
Deixe-se ouvir

Prólogo
Acordo assustada, suando frio e tremendo. Levanto-me e corro para a janela do quarto, o chão de madeira range debaixo de meus passos pesados. Abro-a, deixando o cheiro de sal e a brisa gelada entrarem. Encaro a lua cheia que se ergue pouco acima do mar revolto e percebo que há um anel de cores ao seu redor, sinal de chuva a caminho e com isso respiro fundo. |
Ando silenciosamente até a cozinha para não acordar mamãe que dorme na cama ao lado. Encaminho-me até a geladeira para me servir de água gelada. Esfrego os olhos para aliviar a irritação enquanto ando até o sofá da sala para ligar a televisão e vejo o horário no canto superior da tela, 03h47min da manhã.
O que pode estar passando na televisão? Penso comigo mesma e suspiro, passando de canal em canal. Sei que não vou conseguir dormir por um bom tempo... O que eu vou fazer?
Volto novamente para o quarto e pego uma muda de roupa que está sobre a cadeira ao lado das malas prontas já que amanhã vamos voltar para a capital, Rovena. Visto o short jeans escuro, a bata branca folgada, os chinelos e saio para rua. Deixo a noite me abraçar e ando até a beira da praia que fica a uma quadra de casa, meus pés afundando na areia gelada e úmida enquanto fito o mar azul escuro.
Ando por alguns metros não querendo me afastar muito de casa, mas sem a mínima vontade de voltar. Agacho-me para pegar algumas conchas e começo a tocá-las longe, sem preocupação, só esperando o tempo passar e o sono querer voltar. De repente sinto minha mancha branca de nascença em forma de lua crescente atrás do ombro direito gelar levemente, causando leves tremores pelo corpo e consigo perceber que não estou mais sozinha, então ergo o olhar vendo ao longe uma pessoa perto do mar a alguns metros de mim. Fico observando sem saber se volto no mesmo passo que cheguei ou se fico para saber o que está fazendo a esse horário aqui. Na dúvida começo a chegar perto para vê-lo, mas mantendo uma distância segura.
Fico uns metros atrás examinando o garoto alto, esguio, de pele morena, cabelos negros e bagunçados. Ele está de costas para mim sem camisa, somente de calças jeans escuras e pés descalços em cima de uma enorme rocha submersa nas águas. Franzo o cenho vendo sua posição ereta, ombros largos e costas bem definidas, os braços caem ao seu lado relaxados. Vejo um relâmpago rasgar o céu iluminando seu semblante, clareando muito mais a imagem. Suas calças estão um pouco baixas mostrando levemente a aba da cueca branca, os cabelos voando conforme a brisa sopra, mas o que mais me chama a atenção é a enorme tatuagem que toma suas costas. A imagem de um enorme dragão com as garras fincadas em sua pele, seus olhos brilhando como dois focos de luz.
Quando percebo o garoto vira a cabeça para o lado como se tivesse ouvido meus pensamentos. Caminho rapidamente para detrás de uma árvore a beira da rua enquanto o vejo olhar o ponto onde anteriormente estava. Seu rosto foi tapado por uma nuvem, mas pude ver seus olhos negros e profundos antes de se virar novamente para o mar.
Mas que diabos ele está fazendo? Pergunto-me o observando e ao mesmo tempo sentindo uma onda de medo percorrer meu corpo alertando-me para voltar para casa.
Sem saber ao certo se devo, saio de trás da árvore sem tirar os olhos dele por nenhum momento. Percebo como o mar se agita e as ondas quebram nos rochedos fazendo a espuma branca formar desenhos em torno das pedras enquanto ele ergue a cabeça para o alto e abre os braços, como se estivesse esperando que algo caísse dos céus. Logo em seguida começa a chover, a água banha-me dos pés a cabeça, incessante e forte. Quando percebo já estou encharcada, mas nem por isso retiro meus olhos dos relâmpagos e trovões que caem no mar. E antes que pudesse fazer qualquer coisa o vejo se virar lentamente enquanto a água escorre por seu corpo esguio e seminu. Ele me olha fixamente nos olhos, surpreso, mas logo em seguida desmancha a feição. Meu coração dá um pulo dentro no peito e à pulsação acelera.
Fico imóvel com a respiração pesada como se eu fosse à presa e ele o caçador. O vejo semicerrar os olhos tentando enxergar com clareza em meio à chuva, mas sei que me viu e antes de dar o primeiro passo em minha direção corro como nunca corri em toda minha vida. Não olho para trás e nem o sinto se aproximar, mas isso não faz com que diminua a velocidade.
Entro em casa e fecho a porta enquanto me sento no chão com a garganta quente e os pulmões explodindo. Repasso o que vi mentalmente reconhecendo que algo nele me deixou tremendamente apavorada e ativou alguma coisa em minha mente. Um calafrio sobe pela espinha e se expande para o restante do corpo aumentando o frio desconfortável.
– Calma. Já passou. Esta segura. Respira. – Digo a mim mesma em um sussurro.
Tento esquecer seus olhos, mas eles não somem de minhas vistas nem seu corpo atlético. Obrigo-me a levantar e seguir para o banheiro enquanto tiro as roupas ensopadas e as deixo pelo caminho. Ligo o chuveiro permitindo que a água quente esquente a minha pele gelada enquanto fecho os olhos e relaxo, mas a imagem do garoto vem em minha mente com clareza: sua pele morena brilhando ao luar, as gotas de chuva caindo dos cabelos negros sobre os olhos percorrendo seu peito largo até o abdômen... Arfo com o calafrio enquanto abro os olhos e lembro-me da tatuagem gigantesca em suas costas, de como ela parecia viva e dando a impressão de se mexer, mas isso só poderia ser coisa da minha cabeça, mais uma alucinação.
Termino o banho, visto a mesma camisola que estava usando e junto às peças de roupas molhadas que larguei pelo caminho. Jogo tudo em um canto do banheiro sem ter paciência ou cabeça para torcê-las e pendurá-las. Deito-me na cama e sonho com ele e com uma pergunta que não me abandonou até voltar para a cidade no outro dia: Como uma coisa tão assustadora, pode ser assim, tão sedutora?
