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4. 

A Chave
Uma vez me disseram que tudo está interligado,
É engraçado perceber isso da pior maneira.

Subo na moto antes do sinal bater sabendo que tinha que voltar o mais rápido possível para casa. O motor ronca junto com a sirene e me apresso para pôr o capacete e subir na minha Shadow 750 antes de dar a partida. Ouço o pneu cantar contra o asfalto e arranco o mais rápido possível, corto caminho por entre os carros e em, aproximadamente, trinta minutos chego ao Lago Cristal que fica mais para a parte externa da cidade de Rovena, quase em meio à floresta.

  Avisto meu prédio de frente para o lago logo em seguida, entro na garagem e em poucos segundos já estou passando a chave na porta. Dou alguns passos a frente entrando na vasta sala antes de jogar a jaqueta de couro no sofá preto de frente para a lareira. Meus coturnos fazem barulho contra as tábuas de madeira no chão da sala enquanto me direciono para a cozinha para me servir com de um pouco de água.

  – Continua pontual.

  Sorrio com os lábios no vidro antes de me virar e ver Valentina encostada no balcão de mármore sorrindo cansada.

  – Eu tento. – Respondo e lhe lançando um sorriso torto, mas logo fico sério. – Você que tem que parar de gastar energia vindo até aqui, e sabe muito bem como cada vez isso fica mais difícil.

  Vejo-a bufar como uma criança birrenta, mas ao mesmo tempo prosseguindo com o olhar sábio e cansado.

  – Não venha me dar lição de moral garoto. – Rebate. – Sei que não posso, mas preciso fazer isso.

  Largo o copo dentro da pia antes de segui-la até o sofá.

  – Você precisava de mim e estou aqui. Não precisa mais gastar energia para me passar lições todos os dias.

  Valentina suspira antes de se virar para mim.

  – Claro que preciso ainda mais quando Luna reconheceu você.

  Respiro fundo e olho para a enorme janela que vai do teto ao chão dando uma bela vista para o vasto lago e suas árvores à volta.

  – Eu sei. Ela quis deixar bem claro hoje. – Concordo e volto-me para ela. – Luna tem medo de mim, sei disso, mas ao mesmo tempo...

  – Vocês se sentem extremamente atraídos um pelo outro. – Valentina termina minha frase e limito-me a concordar com um aceno de cabeça. – Eu já havia avisado sobre isso.

  – Eu sei. – Levanto-me impaciente e caminho até a janela. – Eu sei o porquê vim, sempre soube desde que éramos pequenos, mas não sei se conseguirei fazer meu trabalho sem ela saber da verdade.

  – Luna ainda não pode saber a verdade. – Valentina aparece ao meu lado e coloca a mão sobre meu ombro. – Por isso você está aqui, para ajudá-la até lá.

  – Mas como conseguirei me aproximar, se ela tem medo de mim? – Pergunto e sinto dúvidas pela primeira vez desde que cheguei.

  – O que vocês têm é muito mais forte do que qualquer medo que ela possa ter sentido, meu querido. – Olho-a sorrir para mim e as rugas de expressão ficarem mais evidentes no canto de seus olhos e instantaneamente sinto uma paz me tomar.

 

Em todo o caminho de volta para casa não pude deixar de pensar em Duncan e no que ele estava fazendo aqui, muito menos de como me sinto na presença dele: frágil, mas ao mesmo tempo forte, com medo, mas ao mesmo tempo segura. Mas o que mais me vem em mente é o fato de minha mancha de nascença gelar quando ele se aproxima, exatamente como ocorreu quando o vi na beira do mar há uma semana e sei há muito tempo que, quando isso acontece, não é um bom sinal.

  Entro em casa e logo vou direto para meu quarto, sei que mamãe não irá almoçar em casa hoje por causa do movimento que está na floricultura. Quando chego ao topo avisto o longo corredor iluminado, observo a luz do sol fazendo desenhos na tábua escura e quando estou passando pela porta aberta do quarto de mamãe, sinto a brisa jogar meus longos cabelos para de encontro ao rosto. Nada melhor do que estar em casa, penso.

  Abro a porta e ando até a janela para abri-la, deixando o sol banhar o quarto por inteiro e o vento transitar livre se apoderando do espaço amplo. Fico um curto momento ali, só com os olhos fechados devido ao sol, sentindo minha pele sucumbir ao calor e a brisa fresca. Mas então viro as costas e olho para meu cantinho, meu refúgio.

  De frente para a janela fica a cama de casal e na cabeceira da cama há uma pequena prateleira abarrotada de caixas para joias, perfumes e meus livros de cabeceira. Ao lado esquerdo fica o roupeiro em um tom de marrom que nem sei qual é, mas que combina com a cama e o restante das peças que ali ficam. Ao lado direito da cama tem a porta e ao seu lado direito no canto da janela fica a mesa de estudos com meu laptop e alguns livros bagunçados em torno. Ao lado esquerdo, perto do roupeiro fica um enorme Puff branco e na parte de cima da cama, fica uma prateleira com vários livros, que são meus maiores tesouros pessoais.

  Jogo a bolsa em cima da cama e sigo para o banheiro. Mal saindo do quarto dobro à esquerda e vou direto para a pia lavar as mãos. Depois me olho no espelho percebendo que meu cabelo está desarrumado devido ao vento da vinda para casa, então decido o prender em um rabo de cavalo no alto da cabeça. Logo depois jogo água no rosto e deixo as mãos pousadas por um instante nos olhos, agora muito mais calma e já esquecendo completamente daquela manhã desagradável.

  Desço as escadas e dobro a direita, entrando na cozinha que fica praticamente aberta para a sala. Entra uma claridade forte pelas janelas de vidro e me direciono até a geladeira para fazer um sanduíche já que a fome não é grande. Pronto o sanduíche, começo a comê-lo no balcão da cozinha americana tentando engolir cada pedaço, mas sentindo que ficavam obstruídos em minha garganta. Tomo um longo gole de suco de laranja tentando fazê-lo descer.

  – Mas que droga mesmo. – Resmungo e jogo o sanduíche para o lado.

  Levanto a cabeça e olho para o relógio na parede da cozinha percebendo que é uma hora da tarde. Suspiro alto lembrando que a consulta era só às duas da tarde, foi então que senti minha mancha de nascença gelar e percebo um vulto passar correndo pela sala se esgueirando atrás do sofá. Fico tensa e pego uma faca do faqueiro ao lado do balcão, começo a me encaminhar lentamente até a sala. Ouço uma risada infantil vir detrás de mim, então me viro assustada, não vejo nada e logo em seguida ouço a porta do pátio bater do outro lado do cômodo. Então começo a andar em sua direção enquanto  engulo em seco.

  Mas o que estou fazendo? Pergunto-me sentindo as mãos começarem a suar.

  Prossigo andando e vejo a porta aberta, o pátio lá fora vazio pelo que aparenta, então saio sentindo a grama quente fazer cócegas nos meus pés nus, olho para os lados e não vejo ninguém, nenhuma criança. Nenhum vulto.

  Abaixo a faca e volto para a cozinha largando-a onde a havia achado. Subo correndo para meu quarto e me tranco com o coração ainda palpitando dentro do peito. Deito-me na cama e fico encarando o teto com o braço esquerdo fazendo sombra em meu rosto. Aos poucos começo a virá-lo e vejo os oito dígitos na palma de minha mão. Suspiro e jogo um travesseiro no rosto.

  A vontade de ligar para Duncan e esclarecer sobre aquela noite é forte demais, mas não posso simplesmente ligar e esperar que me responda o que foi aquilo que vi. Com isso reviro-me na cama tentando espantar a vontade, mas ela não quer se desfazer. Então percebo que tenho medo de saber a verdade, de saber quem ele realmente é, de saber o porquê voltou e do que aconteceu nesses sete anos que o fez mudar tanto.

  Sento-me na cama e puxo o celular do bolso quando vejo já estou ligando para ele. No segundo toque ele atendeu.

  – Alô.

  – Hã... – Engasgo sem saber o que dizer.

  – Ah! Oi Luna. – Ouço sua voz rouca do outro lado da linha imaginando um sorriso malicioso aparecer em seus lábios. – Tudo bem?

  – Tudo. – Respondo e respiro fundo ainda não entendendo como reconheceu minha voz tão rápido. – Estou ligando pra dizer que... – Sinto as palavras ficarem trancadas na minha boca como se não pudesse pronunciá-las, não agora. Sei que preciso me aproximar dele, saber se ele é confiável. – Liguei para dizer que se quiser posso lhe ajudar hoje com alguma matéria.

  Não sei se estou fazendo a coisa certa, mas preciso saber com quem estou lidando e a forma mais prática de fazer isso é conviver.

  – Ah! Claro. – Responde. – Onde nos encontramos?

  – No mesmo lugar que iríamos nos encontrar amanhã. Só que as quatro da tarde, pode ser? – Respondo enquanto sinto a expectativa crescer cada vez mais.

  – Claro. Sem problemas.

  – Ok, então. Até mais tarde.

  – Ei, espere. – Pede enquanto sinto meu corpo inteiro ficar tenso e quando vejo estou segurando a respiração. – O que fez você mudar de ideia?

  Solto o ar que estava trancando e sentindo o sangue pulsar mais rápido nas veias.

  – Sinceramente não sei.

  – Acho que foi saudade. – Ouço rir do outro lado da linha, mas logo volta a falar. – É brincadeira, pode ficar calma.

  Suspiro antes de responder.

  – Na realidade estou adiantando a aula, pra poder me ver livre de você o mais rápido possível. – Rebato e me arrependo no mesmo momento. – Não se preocupe, é brincadeira também.

  – Não precisa ser sarcástica... – Rebate. – Até as quatro então?

  – Até as quatro. – Resmungo antes de desligar o telefone.

 

Guardo o celular no bolso da calça jeans e olho incrédulo para Valentina que se limita a sorrir satisfeita como se suas suspeitas fossem confirmadas.

  – Falei que ela iria até você.

  – Mas como isso aconteceu? – Pergunto ainda sem entender o que havia acontecido. – Não foi pelo meu ar sensual.

  Valentina dá uma risada e senta no sofá novamente.

  – Ela está com dúvidas, medos e aflições... Ela precisa esclarecer as coisas e no momento o que mais a intriga é você.

  Sento-me no braço do sofá e a encaro com dúvida.

  – Eu sei disso, mas isso não a levaria em direção ao medo. – Rebato. – Vi que ela é inteligente demais para isso. Não pode ser simplesmente uma atração e dúvidas que a levariam direto a mim, não depois de tudo o que ela viu.

  – Ela viu Gondra? – Vejo-a se ajeitar melhor no sofá e me olhar acusadoramente.

  – Não. Tenho certeza que não, mas ele a viu. – Rebato. – Mas não é isso o que importa agora e sim que tenho pouco tempo, mas Luna está facilitando as coisas para mim. Não era para acontecer o contrário?

  Valentina ri levemente.

  – Você não a conhece, não como eu. Ela fará de tudo para saber a verdade, ainda mais quando é algo que a surpreende, em vez de fugir do que a assusta ela corre em direção ao medo.

  Franzo o cenho percebendo que Luna não era mais a garotinha indefesa de anos atrás. Sinto dentro de mim algo se contorcer como se isso no fundo me agradasse e muito, mas não posso esquecer para o que vim. Então respiro fundo tentando me limitar a ficar sério.

  – Se é assim, então não preciso me preocupar em fazer nada, ela fará tudo. – Rebato e faço uma pequena pausa refletindo. – Isso me faz pensar o porquê estou aqui. Sinto que você me contou praticamente nada.

  Observo Valentina se mexer desconfortável no sofá.

  – É verdade. – Concorda e suspira antes de prosseguir. – Não lhe contei tudo, mas temo que quando contar você desista e decida seguir seu caminho novamente quando na realidade ele esteve o tempo todo aqui.

  Sinto uma fisgada no meu ombro sentindo um desconforto evidente se remexer por cima de minha pele. Um enjoo cresce na boca de meu estômago e temo fazer qualquer pergunta para esclarecer minhas dúvidas.

  – O que você está me escondendo Valentina?

  Ela se aproxima mais de mim no sofá e pega em minhas mãos. Seus olhos me avaliando com cautela e dúvida antes de começar a falar.

  – Estou escondendo o que você realmente é... Estou escondendo o porquê o chamei aqui, o do porquê preciso tanto de você nesse momento.

  Respiro fundo enquanto um bolo se forma em minha garganta.

  – Do que você está falando? – Pergunto depois de pigarrear. – O que isto tem a ver com a Luna? Você não me chamou por causa dela?

  Valentina sorri terna.

  – Isso tem tudo a ver com a Luna. O que você é e para o que veio, está relacionado a ela. Vocês dois estão unidos para sempre, meu querido. – Sinto-a acariciar minha mão, mas não consigo desgrudar meus olhos dos dela. – Você é a chave.

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