
Deixe-se ouvir

1.
Cemitério
É apenas o começo.
A brisa nessa manhã sopra mais gélida contra minha pele enquanto caminho para o cemitério sobre a alvorada de domingo. Envolvo meus braços contra o casaco enquanto piso no gramado verde escuro entre as lápides, não preciso me preocupar muito com o caminho para chegar, pois dois meses longe de Rovena não me fariam esquecer onde minha avó está há treze anos. |
Caminho distraída e encontro um lindo buquê de rosas brancas sobre uma enorme lápide, observo o anjo de pedra fazer sombra sobre elas com sua espada fincada na terra. Peço licença e pego uma rosa sem saber ao certo o porquê fiz isso já que os mortos não estão por aqui para se importar. Então prossigo andando e chego à lápide da vovó, sento-me sobre a grama de frente para seu nome: Valentina Hansen Prado (1932-2006) – Amada e inesquecível Avó e Mãe.
– Oi vovó. – Digo e pouso a rosa ao lado da sua foto. – Desculpe ter ficado tanto tempo longe, mas a mamãe quis fazer uma viagem mais longa dessa vez. – Rio sem humor. – Voltamos ontem e ela já quer me mandar amanhã no Doutor Jair.
Observo sua foto enquanto ouço o silêncio como resposta. Sinto uma pontada no peito e as lágrimas ganham meus olhos, então respiro fundo e olho para o céu cor de laranja.
– Disse pra ela que não preciso ir mais, que já está tudo bem, mas ela não ouve. – Volto meu rosto para a foto. – Desde que você se foi ela não ouve mais ninguém.
Uma lágrima escorre por minha bochecha e levo a mão rapidamente para secá-la como se fosse alguma espécie de crime demonstrar o que sinto.
– Só você me entendia e conseguia fazê-la entender. – Digo enquanto fungo e passo a mão no nariz. – As coisas só estão piorando conforme o tempo passa... Os remédios não estão mais funcionado como deveriam, não consigo dormir sem ter pesadelos ou simplesmente sair andando pela calçada e acordar no meio da rua. – Abraço-me novamente. – O pior são as alucinações...
Ouço um assovio por entre as lápides, então olho para os lados procurando alguém, mas não vejo nada enquanto tenho a certeza de que foi o vento.
– Ontem de madrugada tive outra alucinação. – Prossigo e não acreditando muito no que falei. – Vi um garoto na beira da praia, sem camisa e somente de calças jeans. Ele olhou para o céu e começou a chover, mas o mais estranho foi ver a tatuagem dele se movendo nas costas como se fosse viva... – Paro sentindo um calafrio subir por minha espinha. – Senti que o conhecia e que era tão palpável quanto minha própria pele. – Rio e fungo. – Por isso digo que os remédios não fazem mais efeito, mas não posso falar isso para a mamãe, você sabe como ela iria reagir ou até mesmo me internar.
Olho para o lado e vejo um casal se aproximar de uma lápide não muito longe de onde estou. A moça se ajoelha e pousa um buquê de margaridas na grama logo depois se abraça nele e começa a chorar.
– Mas sinto que o psiquiatra não vai me ajudar, não tanto quanto você me ajudava. – Sorrio. – Já faz doze anos que vou ao mesmo consultório para ouvir as mesmas coisas e prosseguir do mesmo jeito. Tá, tudo bem, nos primeiros anos não tive nenhuma alucinação e os pesadelos pararam, mas depois voltaram piores do que eram. Você se lembra daquela vez que acordei sentada no parapeito do viaduto e só tinha dez anos, ou aquela outra vez que acordei com a cortina pegando fogo ao lado da cama. – Olho para o casal novamente e percebo que já estavam de partida. – Mas de certa forma sinto que esses pesadelos querem dizer algo, mas não sei ao certo o quê e nem que vão embora tão cedo. Já as alucinações... Cada vez que as tenho me sinto mais louca!
O sol transformou o verde escuro da grama em um verde mais claro e a lápide cinza escuro de vovó voltou ao tom mais claro.
– Queria que estivesse aqui novamente, que pudesse me ajudar e convencesse a mãe que se o Doutor Jair não me ajudou em doze anos não pode mais. – Sorrio triste e acaricio sua foto com o dedo. – Queria ficar mais, mas tenho que voltar para ajudar a mãe a tirar a poeira de dois meses da casa. Prometo voltar mais vezes. Eu te amo vovó.
– Também te amo, minha querida. – Sorrio, enquanto a vejo se levantar do chão e limpar a terra das calças jeans. – Sempre estou com você e sempre estarei, mas só pare para olhar.
Observo Luna se virar para trás e olhar para mim, mas sei que não me vê, mas tenho certeza que me sentiu aqui em todo o tempo que estava falando. Seus olhos varrem todo o contorno da lápide e sorri triste, enquanto se vira para frente e prossegue andando com os braços em torno de si mesma.
– Não ignore o óbvio, minha querida. – Digo enquanto sento-me sobre minha própria lápide e pego a rosa branca. – Não se deixe levar pelas loucuras da sua mãe, não lute contra seus poderes, não agora...
– Você sabe que ela não vai aguentar muito tempo, não é?
Viro-me e olho para Duncan, sua silhueta esguia por debaixo da jaqueta de coro e os óculos espelhados.
– Sei e é por isso que o chamei aqui.
– Você não sabe se esse plano vai dar certo. – Diz enquanto tira os óculos e olha para mim com seus olhos escuros como a noite. – Ninguém tem certeza de que dê.
Sorrio cansada com a sabedoria de anos refletindo em minhas rugas.
– Pode não dar, mas sei que dará o seu melhor. – Envolvo sua mão com a minha mesmo sabendo que não pode me sentir. – Sei disso, pois conheci seu pai há anos e o ajudei a criar você, são muito parecidos e por serem que confio em você de olhos fechados.
Duncan beija minha mão antes de colocar os óculos escuros novamente.
– Obrigado. – Diz sorrindo de canto. – Mas não é com isso que me preocupo e você sabe muito bem com o quê.
– Tudo ao seu tempo, meu querido.
– Mas ambos sabemos que esse dia chegará, e todos temos que estar preparados até lá. – Diz com a voz embargada de tensão.
– Paciência nunca foi o seu forte, não é mesmo?
Duncan ri, fazendo o rouco de sua voz ficar mais alto.
– Digamos que esse é um dos meus pontos fortes.
– Não, essa é a sua maior fraqueza.
